EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS
Em certo sentido, tudo é filosofia, tudo tem um significado que pode e deve ser explicitado. A meditação mais profunda de qualquer dimensão do real se processa na filosofia. O pensamento do que seja o cinema deve, pois, ser tarefa filosófica. Não obstante, preferiria inverter a pergunta: em que pode o cinema contribuir para a filosofia? O problema pertence aos filósofos, mais do que aos cineastas e aos críticos de cinema. (BORNHEIM, S/D)
Gerd Bornheim considerava o cinema um campo aberto para as experimentações artísticas contemporâneas. Percebia – já na câmera cinematográfica – as modulações da angularidade, incitadas pelas imagens e seus contextos. Não se contentava com a “suficiência visual da imagem”. Para ele, compreender a imagem é também sentir e perceber a realidade. É por isso que o cinema será um dos estímulos mais potentes a suas problematizações. É o que fez no ensaio “Miramar, um filme de Julio Bressane” e também no ensaio “Duas características do expressionismo”. Lays Gaudio Carneiro, tomando como ponto de partida essa ensaística, observou esse modo de percepção através da obra de Julio Bressane. Segundo Rosa Dias, Lays Carneiro foi precisa ao valorizar o sentido da musicalidade como inspiração da dramaturgia da imagem em Bressane. E essa dramaturgia, que brota de um intenso exercício do olhar e da imaginação, é justamente um dos pontos de contato entre Bornheim e Bressane.
Em entrevista concedida por Júlio Bressane e Rosa Maria Dias em Janeiro de 2020, Bressane conta que conheceu Gerd Bornheim na praia (Arpoador) quando intencionava rodar um filme sobre Sartre. O inusitado encontro parecia uma cena de cinema, pois ao visualizar um sujeito esguio, absorto em pensamentos, e como que perdido naquela paisagem carioca, Bressane o interpelou, convidando-o para tomar parte no “idealizado” filme. A resposta afirmativa e espontânea de Bornheim deixou transparecer certa surpresa, já que eles não se conheciam, e Bornheim já havia produzido, na época, parte de sua destacada ensaística sobre a obra de Sartre. O filme acabou não se concretizando, mas a amizade perdurou até o falecimento de Bornheim em 2002. Bressane (2020) afirma que Bornheim era um “sujeito espontâneo” de “espírito tolerante em uma época de certa intolerância”, num diálogo, por exemplo, ele sabia “aproveitar os intervalos, os entretempos” e “exercia algo que é muito ausente nos tempos atuais e que considero fundamental para o diálogo: a prática da escuta do outro”. Para ele, Bornheim fazia com que as disciplinas se entrelaçassem, dando vivacidade, quebrando o clichê. É que para Bornheim, “as artes são sempre caminhos através dos quais a realidade se manifesta ao homem”. (BORNHEIM, S/D)
Trecho da dissertação A formação da imagem na linguagem cinematográfica de Júlio Bressane de Lays Gaudio
Disponível em: http://www.artes.ufes.br
O que está em causa no cinema - e penso aqui esta arte enquanto detalhe incrustado numa vocação maior - concentra-se no sentido que possa oferecer o cinema no contexto de um horizonte que apenas se anuncia.
Por tais caminhos Júlio Bressane se faz esteta: ele percorre os vieses da linguagem cinematográfica, quer saber de seu sentido, e por inteiro. E o que importa está precisamente no seguinte: não se trata da elaboração de uma estética teórica afeita a desvãos abstratos e que passaria a ser aplicada subsequentemente, e sim da criação de uma estética da feiura de um filme. Há está visível, a exuberância dessa criação, mas há também, a acompanhá-la, a perquirição dessas sombras que são limites das andanças do cinema e mesmo da arte de modo geral A candura do personagem Miramar talvez não seja mais do que a prospecção da própria morte. Opto pela expectativa: o cinema certamente será apenas o primeiro passo de uma totalmente outra. Bressane cria nessa confluência das fronteiras.
Trechos do texto Um filme: Miramar de Gerd Bornheim.
BORNHEIM, Gerd. “Um filme: Miramar, de Júlio Bressane”. Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998.
Datiloscrito original de "Miramar".