“Estou certo que seu substantivo trabalho atrairá a atenção e o aplauso dos que, entre nós, se consagram ao estudo de temas filosóficos, tornando-se em todos os seus méritos, obra instigadora de reflexão e aprofundamento cultural brasileiro”
(Trecho de carta de Carlos Drummond de Andrade endereçada a Gerd Bornheim. Carta de 1980, Rio de Janeiro, acervo do grupo de pesquisa Crítica e experiência estética / UFES).
A literatura e a música sempre estiveram no rol das linguagens artísticas que mais estimularam a formação de Gerd Bornheim. Pela via da literatura e da música ele buscava o sentido da língua, a pulsação rítmica dos arranjos simbólicos. Era nessas expressões que via o problema da linguagem se sobressair de forma intensa.
No caso da literatura além do exercício de apreender as coisas pela palavra, ora ficcionalizando-as, ora expondo sua carnadura real, Bornheim enxergava a disseminação de um insopitável espírito crítico, que encetava justamente os contornos de sua própria ensaística. Não é à toa que ele faz pela literatura aproximações específicas com a filosofia. Isso pode ser acompanhado nos ensaios “Filosofia e poesia” (em Metafísica e finitude) e “A literatura e o espaço da estética” (em Páginas de Filosofia da Arte). Trata-se de um aventurar-se em busca da compreensão da linguagem e da realidade. Bornheim era leitor assíduo de poetas como Fernando Pessoa, T.S. Eliot, Rainer Maria Rilke, Hölderlin e dos brasileiros Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto entre outros. Era leitor ainda da prosa de Guimarães Rosa e de Machado de Assis, autores cuja ironia e jogos linguísticos o estimulavam na busca de seu próprio estilo. Uma outra vertente dessa aproximação literatura e filosofia era seu interesse por percorrer a obra de escritores que colocavam problemas filosóficos (como Drummond em Sentimento do mundo ou João Cabral em A educação pela pedra) e de filósofos que se exprimiam de maneira literária (como Montaigne, Nietzsche e Sartre). A música também mobilizaria questões dessa amplitude ao lidar, nos interstícios de espaço e tempo, com as noções de totalidade e separação, conceitos-chave para se compreender estéticas como a de Wagner e a de Brecht. É toda uma abertura para a flexibilidade da escuta que Bornheim propõe ao dizer em seu ensaio sobre A linguagem musical, que “a música não é apenas um problema de música”, mas compreende os problemas culturais de forma intensa. Sandriani Muniz em sua dissertação de mestrado transitou por problemas dessa natureza ao abordar as narrativas culturais da estética punk. Ela se deu conta da intersecção que faz da ensaística de Bornheim uma escritura de entrosamento entre as linguagens artísticas.
Um outro aspecto que vem sendo trabalhado pelo grupo de pesquisa Crítica e experiência estética é o alcance da escrita bornheimiana, visto que o ensaísmo proposto pelo autor pode ser flagrado tanto em seus escritos publicados por editoras brasileiras como em suas cartas e notas de trabalho. O projeto de Anielle Paola de Paula, por exemplo, trata da ligação entre as interpretações estéticas de Bornheim com as experimentações críticas e literárias do escritor Paulo Hecker Filho. Nesse sentido, encontramos, na troca de cartas entre os autores, questões que aparecem mais tarde em suas publicações. Numa das cartas, Hecker tece comentários sobre o livro de Bornheim, O conceito de Descobrimento (publicado em 1998 pela EDUERJ), a partir de críticas assinaladas também no ensaio “Sartre na hora da admiração”, publicado no livro Saudades de Voltaire[1]. Esse diálogo se fez também por meio das observações de Bornheim sobre a obra de Paulo Hecker Filho. É o caso do ensaio “Sartre revisto”, onde ele discorre sobre o conto “O internato”[2], de Hecker, “que mostra muito bem as medidas do impacto geral de Sartre em nossa literatura”[3]. Tais confluências deixam ver o espontâneo entrosamento dessas interlocuções e nos fazem sentir a pungência da experiência criativa dos textos. O modo como eles se expressam, tanto nas cartas como nos ensaios, poesias ou crônicas, revela uma escrita criativa, onde a imaginação poética é preponderante e, associada às vivências e leituras de mundo, deflora a experiência estética. O deflorar da vivência é também um tema importante para Marina Aragão, que em sua dissertação de mestrado faz um estudo incontornável sobre a leitura de Bornheim de Rilke. Assim, na esteira do que Blanchot comenta sobre Rilke, podemos perceber ao menos três características formadoras da personalidade de Bornheim. A primeira é aquela que mostra a vivência do autor como matiz norteador de seus estudos sobre arte e de seu interesse em descobrir o sentido da realidade. A segunda é que, tal como em Rilke (e provavelmente na teia dessa inspiração), essa vivência se confunde com a própria necessidade "vital" da experiência com a linguagem (a escrita enquanto experiência). E, finalmente, em seu envolvimento com áreas culturais, artísticas e filosóficas, subjaz uma crítica a um modo de vida alienado e inerte, que produz homens vazios (uma percepção análoga a de Rilke ao tomar consciência de seu tempo). Nesse sentido, a leitura dos poetas é para Bornheim o substrato indispensável para a percepção e a compreensão do mundo[4]. No caso de Rilke, interessa-lhe, como estudou Marina Aragão (em dois datiloscritos de Gerd Bornheim), percorrer os arroubos da imaginação e da apreensão das imagens.
[1] Paulo Hecker Filho. Saudades de Voltaire. Porto Alegre: Editora Sulina, 1998.
[2] Essa é uma das crônicas que compõem o livro Juventude de Paulo Hecker Filho (Editora Sulina, 1998). O texto é de 1951, mas foi compilado juntamente com outros textos dos anos 1950 e publicado nessa edição da Sulina.
[3] Gerd Bornheim, “Sartre revisto”. Transcrição, apresentação e notas de Gaspar Paz. Rapsódia: Almanaque de Filosofia e Arte, São Paulo, n. 6, 2012, p. 17.
[4] Destacamos aqui as inestimáveis contribuições para essa discussão de Aline Prúcoli (por meio de sua pesquisa de Pós-doutorado no PPGA/UFES) e de Roney Jesus Ribeiro (cuja dissertação de mestrado coorientei). Ambos desenvolveram pesquisas com interfaces entre a crítica literária e a crítica artística. Roney Ribeiro estudou a obra de Carlos Drummond de Andrade, que figura entre os interlocutores de Gerd Bornheim. Aline Prúcoli por sua vez estudou a impressão fotográfica da linguagem de Lobo Antunes a partir da desconstrução derridiana.
"[...]hoje cedo sua longa carta com tantos pensamentos...As coisas da arte são sempre resultado de ter estado em perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até um ponto que ninguém consegue ultrapassar. Quanto mais se avança, tanto mais própria, tanto mais pessoal, tanto mais singular torna-se uma vivência, e a coisa da arte é enfim a expressão necessária, irreprimível e o mais definitiva possível dessa singularidade... Aí a enorme ajuda das coisas da arte para a vida daquele que tem de fazê-las[...]" (RILKE, 2006, p. 26).
A experiência estética em Rilke revisitada a partir das interpretações de Gerd Bornheim
Marina Pedreira Aragão
Rainer Maria Rilke (1875-1926) e Gerd Bornheim (1929-2001) atraem-nos a atenção sobretudo pela forma tão peculiar de captarem a realidade e suas nuances. Por essa razão, vislumbramos nesta pesquisa a riqueza do percurso crítico e artístico percorrido por ambos.
Estes traços importantes na obra de Rilke despontam em seus escritos, que trazem além da marca de um pensamento original a capacidade de incursão numa amplitude de gêneros que se expandem pela poesia, romance, críticas de arte, correspondências, memórias e traduções.
A riqueza da obra do poeta reside, sobretudo, em sua sofisticada escrita, cujo trabalho de burilamento resulta em permanente ato de auto-recriação. Assim, a produção poética de Rilke incita uma leitura reflexiva, para que possamos adentrar com intensidade em seu projeto literário.
Gerd Bornheim, por sua vez, ocupa um lugar peculiar no pensamento filosófico brasileiro. Como crítico, desenvolveu reflexões sobre a natureza da arte, da linguagem e da experiência estética. Deste modo, o diálogo que Bornheim promove entre filosofia e literatura, se dá no plano interpretativo das obras de autores fundamentais de nossa história. Para além do estudo de Bornheim sobre Rilke, há outras características que indicam as convergências e os limiares das experiências de ambos.
Instigado por essas nuances, o presente trabalho objetiva contribuir para os estudos destinados à obra do poeta Rainer Maria Rilke, principalmente levando em consideração certas passagens de seus escritos que revelam particularidades de sua experiência estética.
Trecho da dissertação A experiência estética em Rilke revisitada a partir de interpretações de Gerd Bornheim de Marina Pedreira Aragão.
Texto completo disponível em: http://www.artes.ufes.br
Transcrição do datiloscrito "Estudo de Gerd Bornhein sobre Rainer Maria Rilke"
Marina Pedreira Aragão
Busca fugir da maldição do poeta que se lamenta. O poeta deve dizer as coisas. Não julgar os seus sentimentos, mas formá-los, educar-se através das coisas. - Rilke sofre influência: Rodin, o que conta não é a nostalgia, mas a natura das coisas. E Rilke entrega-se a uma atitude passiva, de auto- esquecimento, receptiva, deixa-se absorver o mais possível: procura ver, concentrar-se no que vê, absorver o mais possível. Uma atitude de paciência, de longa espera: espera na transformação daquilo que vê em um poema. Não há mais a espontaneidade do Livro das horas: mas teoria da poesia: surge uma preocupação intelectual sobre o metier poético.
Transcrição completa disponível em: http://www.artes.ufes.br
Datiloscrito "Estudo de Gerd Bornhein sobre a obra de Rainer Maria Rilke".