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A intenção da coluna Ensaio Aberto é  promover um espaço de diálogo que além de apresentar produções recentes do grupo, receba periodicamente textos de nossos colaboradores. 

Gerd Bornheim
Traços de sua fisionomia intelectu
al

Ricardo Barbosa

 

Gerd Bornheim se foi, mas corremos o risco de perdê-lo de novo. Seus livros ainda podem ser encontrados com relativa facilidade, mas quando penso nos muitos artigos, prefácios, conferências, textos de catálogos de exposições, materiais para cursos, vejo que ainda resta um longo trabalho a ser feito. E senos reunimos hoje para homenageá-lo, então que transformemos nossos sentimentos em ações e colaboremos na realização deste longo trabalho.

Gerd sempre foi muito disciplinado e requisitado. Como gostava imensamente de ser professor e ter diante de si uma sala repleta de alunos, dividia sua semana em duas metades que só muito raramente se misturavam. Dava aulas sempre no início da semana, quando habitualmente nos encontrávamos, reservando o restante da semana para atender aos convites que recebia de todo o Brasil. Disciplinado por um senso prático que lhe permitia estar sempre em dia com suas obrigações e compromissos profissionais, tinha também o seu método. Ele costumava dizer que as aulas e as conferências eram o seu “laboratório”, porque nelas voltava sempre às questões que o absorviam. Estas questões eram de tal modo determinantes que Gerd muitas vezes modificava – sutil ou abertamente – o tema que lhe fora proposto para uma conferência. E o que se via então era ele mais uma vez às voltas com o conceito de imitação, com a relação sujeito-objeto, o conceito de crise, o teatro de Brecht, a experiência da alteridade, a diferença, para citar apenas algumas destas questões que o absorviam. Ele as tratava como temas, no sentido musical da palavra. Houve quem o comparasse a um bom pianista de jazz. Como todo pianista, cultivava por um certo tempo um mesmo repertório, mas não deixava que sua interpretação se cristalizasse. Seu repertório soava diferente a cada apresentação, aberto ao risco e ao prazer da improvisação e das variações, seja porque algo interessante lhe ocorrera naquele momento em que falava, seja porque uma pergunta de um ouvinte lhe sugerira um caminho inesperado a ser explorado. Nosso pianista de jazz pensava em voz alta e assim elaborava os motivos que depois desenvolveria por escrito, ora pela convicção interna de que chegara o momento de haver-se com o papel em branco, ora porque a solicitação de um texto para publicação o forçasse a recolher-se e a escrever. Neste momento, o pianista de jazz se tornava o ensaísta que reconhecemos em seus textos. Enquanto estava no “laboratório”, falando para seus alunos ou para o público em geral, ele experimentava, improvisava, pensava em voz alta, chegando mesmo a fazer concessões em proveito de uma comunicação mais direta e clara com seu sou vintes. Ao contrário dos alunos e do público, ele nem sempre deixava o “laboratório” satisfeito com oque acabara de dizer, mas nem por isso alterava o seu método. O rigor conceitual e o apuro verbal, que de resto nunca lhe faltaram nestes momentos, eram especialmente cultivados pelo ensaísta no corpo a corpo com as ideias e as palavras. Gerd costumava dizer que nós, os mais jovens, somos um tanto rígidos; que precisamos aprender algo da técnica da conferência, distinta da que usamos quando preparamos nossas aulas e nossos textos. Ele transitava de tal modo por estes registros que os textos que escrevia depois de tanto falar sobre os seus temas eram o resultado de uma experiência sedimentada e, ao mesmo tempo, a sua crítica. Este era o seu método.

 

Quando comecei a trabalhar como professor no departamento de filosofia da UERJ, Gerd me perguntou se estava satisfeito com esta experiência. Disse a ele que estava me adaptando ao novo cotidiano e gostando especialmente da experiência de escrever as aulas. Ele então me disse que fizera isso no começo de sua carreira, mas que há muito já não mais se preocupava em escrever todas as suas aulas e conferências. Lembro-me de uma ocasião em que não pude assistir a uma destas conferências. Ao chegar na UERJ, perguntei a alguns alunos sobre como Gerd se saíra, se a conferência tinha sido interessante. Como os comentários eram positivos e confiáveis, fiquei chateado e imaginei que poderia minimizar a perda se conseguisse uma cópia do texto da conferência. Foi quando os alunos me disseram que não havia texto algum, que Gerd fora fazer a conferência “como quem sai de casa para comprar pão”. Achei graça desta frase e contei a eles o que disse antes: que o nosso querido pianista já não mais se preocupava com a partitura. Isto porém não quer dizer que a liberdade de pensar em voz alta e de improvisar pudesse prescindir de uma certa ordem nos temas e nos seus encadeamentos. O pianista estava para o ensaísta assim como a capacidade de tocar de ouvido para a de escrever de uma tal maneira que algo do frescor da palavra falada se mantinha no corpo de um texto vertebrado por reflexões prolongadas, metodicamente conduzidas. Como aqueles historiadores, sociólogos e críticos que nos ajudaram a compreender melhor o Brasil, nossa história, nossa sociedade e nossa literatura, mobilizando toda a força expressiva da língua portuguesa, Gerd escreveu numa prosa que resiste a certos limites que a exposição acadêmica nos impõe, nem sempre com razão – uma prosa cuja clareza não dispensava a cor, e cujo rigor não provinha do esforço de dominar a linguagem, mas de entender-se com ela sem coerções.

 

Se as conferências lhe ofereciam a oportunidade de tentativas de sínteses, os cursos universitários– especialmente os de pós-graduação – lhe davam o tempo necessário para desenvolver com mais vagar suas ideias, esmiuçando-as melhor. Era nestes cursos que a ordem dos temas e dos seus encadeamentos –a base de sua liberdade de improvisar e de pensar em voz alta – tornava-se visível, antecipando o que poderia resultar em trabalhos de maior fôlego. Nos últimos anos, ele andava às voltas com duas obsessões, seus dois últimos planos para dois livros: queria escrever o que chamava de uma “introdução” à filosofia contemporânea e um estudo mais analítico em torno das questões fundamentais da estética. Se terminado, este livro seria talvez a contra face sistemática de Páginas de Filosofia da Arte, contrastando com sua fisionomia mais dispersa, pois colocaria em primeiro plano o arcabouço conceitual daqueles ensaios escritos em sua maioria entre 1985 e 1997. Assim, ao lado de uma introdução à filosofia contemporânea, Gerd tinha em mente um livro ao qual chegou a dar um título, não sei se definitivo: Categorias Estéticas.

Seus cursos de pós-graduação dos últimos anos giraram sempre em torno destes dois projetos não concluídos. No centro do primeiro projeto estavam ao menos três questões básicas. A primeira consistia numa indagação sobre a especificidade da filosofia contemporânea – questão metodológica, como ele a entendia, que implicava a discussão das diferentes abordagens históricas e filosóficas ao tema. A segunda questão concentrava-se no motivo da crise e do fim da metafísica, uma crise que Gerd começava a restrear desde Hegel para, em seguida, analisar o que ele considerava as suas três formas emblemáticas de manifestação no século XIX: as três grandes rupturas protagonizadas por Marx, Comte e Nietzsche, centradas na política, na ciência e na moral, respectivamente. Por fim, Gerd se ocupava do que ele chamava de movimentos de “retorno ao passado” e das tentativas de uma “nova ontologia”. Era quando voltava os seus olhos para autores como Heidegger e Scheler. Já o projeto sobre as categorias estéticas aliava o interesse pelas questões sistemáticas, formuladas a partir de um diagnóstico sobre a situação presente das artes e da estética, com uma investigação histórica que começava sempre pelos gregos e o conceito de imitação, discutia a crise de tal categoria na modernidade e os dilemas da estética desde então, aprisionada nas aporias de um paradigma filosófico centrado na relação sujeito-objeto.

 

Os dois projetos aos quais Gerd dedicou seus últimos anos estavam também ligados de muitas maneiras, mas creio que uma delas é sintomática, pois ressalta os limites do seu pensamento e, talvez, seu esforço para superá-los. Ao contrário do que se passava em suas reflexões sobre a filosofia contemporânea, nas quais a crítica à dicotomia sujeito-objeto desempenhava um papel central, mas sem que se pudesse sequer entrever um espaço para o tratamento do que, afinal, é inseparável da especificidade da filosofia contemporânea: o continente descoberto pela revolução na lógica, o continente da linguagem, Gerd manifestava sua preocupação com o problema da linguagem apenas em suas últimas reflexões sobre a arte e a estética. Sob este aspecto, nada secundário, os dois projetos não – ou ainda não– se comunicavam. Na paisagem de sua reflexão sobre a filosofia contemporânea não se via o problema da linguagem. Tanto quanto eu saiba, Gerd nunca se aproximou de Wittgenstein, cujo pensamento aforístico, por vezes vazado com a pregnância de quem formara o seu estilo lendo Lichtenberg e KarlKraus, talvez movesse sua curiosidade, que não era pequena, e dissolvesse resistências intelectuais. Do mesmo modo, Gerd também passou ao largo das diferentes vertentes da filosofia analítica da linguagem. De sua temporada em Oxford, em 1953, voltou convencido de que se fazia má filosofia na Inglaterra. Em Paris, nesta mesma época, viveu a experiência do ensino de grandes mestres, como Merleau-Ponty, Bachelard, Piaget, Guéroult, Jean Wahl e Jean Hyppolite. Pode-se dizer que sua escola foi a da fenomenologia. Marx tornar-se-ia uma grande e constante referência para Gerd, mas o Heidegger que ele aprendeu a conhecer através dos cursos de Wahl e Hyppolite foi o filósofo contemporâneo que mais o inquietou. Desde então, Gerd leu com cuidado o seu Heidegger, sem dúvida, mas o seu Heidegger não era, digamos assim, o “Heidegger da linguagem”, assim como sua relação com a Teoria Crítica limitava-se aos autores da primeira geração, cujo estilo esotérico e algumas idéias – talvez não muito bem compreendidas – deplorava. Por isso creio que ele sempre viu Habermas como um estranho, do mesmo modo que estranho lhe seria Apel e o seu propósito de abrir um caminho para além de Wittgenstein e de Heidegger. Gerd, este descontente com a filosofia da consciência, não se reconheceu nestas tentativas de superação nem no gesto inimitável de Adorno, que levou aquele paradigma aos seus limites. Gerd se foi num momento em que suas reflexões dariam frutos que talvez resultassem em novos motivos de pensamento e até mesmo numa outra atitude filosófica. Que suas últimas reflexões sobre a arte e a estética pudessem ser o casulo no qual uma nova figura talvez se formasse, diz bem de sua personalidade e do seu temperamento filosófico. Para quem tinha os olhos e os ouvidos abertos como ele, para quem cultivou esta abertura num trato intenso e prolongado com toda a tradição artística do Ocidente– pois quem o conheceu sabe o quanto era impressionante sua familiaridade com o teatro e a literatura, a música e as artes plásticas –, a palavra da filosofia tinha a sua hora, mas o seu tom não sobrepujava a voz dos fenômenos, da experiência. E foi na experiência estética que Gerd sempre se confrontou com os limites do seu pensamento. Foi ela que sempre o levou a pensar diferente e a renovar sua linguagem. Nosso ensaísta foi arrancado do seu piano no momento em que se preparava para dar o melhor de si. No entanto, ao lado dos seus últimos escritos, ainda dispersos, restam ainda muitos registros de suas últimas apresentações. Elas estão em fitas de vídeo e cassetes, à espera de quem organize este material, transcreva o seu conteúdo e o torne disponível, seja por meio digital, seja impresso em livros. Esta seria uma das melhores homenagens ao nosso querido Gerd, mas ela só estará à altura do que ele representou para todos nós quando tornar-se uma iniciativa institucional. Felizmente, os primeiros passos já foram dados. Afinal, Gerd deixou uma obra. Ele talvez achasse uma certa graça em tudo isso; ele, que, em 1998, quando sondado sobre a possibilidade de a nova biblioteca dos programas de pós-graduação em filosofia, história e ciências sociais da UERJ ser inaugurada com o seu nome saiu-se com uma resposta que vocês podem imaginar; ele, cujo desprendimento com o seu próprio trabalho sempre o impediu de manter um currículo atualizado, para o que ele dava de ombros, exibindo aquele sorriso debochado. É pelo que ainda está disperso, e que ele deixou pelo caminho, sem registro, que digo que perder este material seria como perder mais uma vez o seu autor. Mas ao menos desta segunda morte podemos livrá-lo.

Ricardo José Corrêa Barbosa

 

Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1982), mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1986) e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992), com estágio de pesquisa na Universidade de Konstanz (1990-91). Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde 1994.

Gerd Bornheim, presente!

 

  Gaspar Paz

Vinte anos após a morte do filósofo, a atualidade de sua obra nos ajuda a compreender “a tragédia contemporânea à brasileira”, imbróglio angustiante e catastrófico que vivemos hoje no país.

Numa carta de 1980, endereçada a Gerd Bornheim, Carlos Drummond de Andrade comenta: “Estou certo que seu substantivo trabalho atrairá a atenção e o aplauso dos que, entre nós, se consagram ao estudo de temas filosóficos, tornando-se em todos os seus méritos, obra instigadora de reflexão e aprofundamento cultural brasileiro”. O comentário do poeta foi certeiro! Bornheim foi articulador de diálogos fundamentais e sua obra reconhecida nos diversos meios em que atuou. Destacou-se como um dos expoentes da filosofia e da crítica artística e cultural no Brasil. Dedicou-se ao ensino e à pesquisa universitária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Além disso, nos deixou uma vasta produção ensaística. Entre suas publicações, vale lembrar O sentido e a máscara (Perspectiva, 1992); Brecht: a estética do teatro (Graal, 1992); Páginas de filosofia da arte (UAPÊ,1998); O conceito de descobrimento (EDUERJ, 1998); O idiota e o espírito objetivo(UAPÊ, 1998); Sartre: metafísica e existencialismo (Perspectiva, 2000); Metafísica e finitude (Perspectiva, 2001) e Temas de Filosofia (Edusp, 2015). Nessas e outras obras perduram o traço ensaístico e a acuidade dos posicionamentos do autor, que vem ganhando leituras e releituras nos últimos anos.

Conheci Gerd Bornheim no Rio de Janeiro. Dialogávamos sobre os mais variados temas, os quais ele percorria com perspicácia, inventividade e uma generosidade intelectual ímpar. Tinha um trânsito flexível por diversas áreas e investia numa movimentação plural que incluía seus interesses pelas práticas culturais e artísticas, pela filosofia política, história da filosofia e campos correlatos. Pensava sempre nas conexões entre esses campos. E tudo isso com uma aguda percepção social e ética. Para ele era fundamental o prazer dos descobrimentos e o desenvolvimento do espírito crítico. Exercia a atividade crítica em perspectiva dialética, vertente assumida a partir de suas incursões sobre as obras de Hegel e Marx. Tratava-se do “aprendizado do ver”, onde as linguagens artísticas ganharam relevo especial. Mas esse “ver”, em sua obra, não se restringe à visão: trata-se de um amplo sentimento-percepção do mundo, das coisas, da realidade. Foi assim que procurou compreender as imagens, as circunstâncias e os contextos do cinema, das artes plásticas, da literatura, da cena teatral e da vida cotidiana. Para isso, dialogava com cineastas, artistas plásticos, atores e diretores de teatro, com o objetivo de entender os meandros de suas produções e de perceber o angular (pontos de vista e tomadas de posição) e a medida (dimensões das obras), que juntamente com outras experiências (como as intuições de espaço e tempo e o uso da linguagem e da comunicação) servem de motores para as experimentações estética contemporâneas. Assim, frequentava as obras de Julio Bressane, Vasco Prado, Marta Gamond, Ilsa Monteiro, Bez Batti, Enio Squeff, Paulo Hecker Filho, Nelson Rodrigues, entre tantos outros. Nesse “aprendizado do ver” a crítica foi se constituindo no contrapeso entre a imagem-contexto e a imaginação, pois como dizia Gaston Bachelard, cujos últimos cursos Bornheim frequentou na Sorbonne: o papel da imaginação não é o de formar imagens, mas o de deformá-las “de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante”. O espírito crítico, as impressões poéticas e essa mobilidade do imaginário completam a vivência filosófica de Bornheim e o modo como ele percebe as coisas, ressignificando-as, recriando-as a partir de um intenso exercício de interpretação. Nesse itinerário, a cena teatral foi para ele um dos espaços mais férteis para reflexões e ações sociopolíticas. Foi nessa perspectiva que enxergou na “separação” brechtiana uma ação “fundamental para reinstalar na realidade o homem, alienado que foi pelo palco italiano, passivo, sentado no escuro, desligado do mundo”. Ele exemplifica o fato dizendo:

Eu entro num cinema e vejo um drama ou uma comédia, acaba o filme, eu ri muito, chorei muito, saio do cinema e digo assim: “Então, amanhã eu tenho que trabalhar”. Quer dizer, voltei à realidade. A arte serviu pra me afastar da realidade. Brecht quer um tipo de arte prazeroso, elegante, litúrgico quase, e que mergulhe o homem, devolva o homem a uma realidade que ele esquece não só quando está no cinema, mas quando trabalha, quando está passeando pela rua. É só. 

 

Observa-se que em suas análises os posicionamentos relativos à política e à filosofia se incorporam aos dados culturais e artísticos e é assim que procede a leitura dos engendramentos sociais de nossa realidade. Seus textos nos ajudam a pensar o presente. Certamente ele não hesitaria, em meio a desenfreada tirania negacionista e terraplanista que se vê no Brasil, em evocar os personagens shakespearianos e brechtianos, que estão de volta à cena nos entreatos dos jogos de poder, nas crises políticas, e mesmo na pandemia covid 19. Bornheim dizia: “o vírus mata o deus” [...] “E se Pasteur tivesse sido grego? A tragédia teria sentido?” [...] “O que seria de uma ficção sem realidade? E mesmo no comportamento usual do homem, não se pode falar numa realidade destituída da ficção. O homem é inseparável da máscara, ela é sua desgraça e sua paixão”. São provocações que nos põem a pensar sobre os desígnios do nosso tempo.

 

 

Diante da complexidade do cenário brasileiro, como não lembrar do Ricardo III shakespeariano? Como não lembrar de personagens brechtianos como Galy Gay (em Um homem é um homem), Mãe coragem, Kalle e Ziffel (em Conversas de refugiados)? Mãe Coragem tinha perdido várias coisas: seus familiares durante a guerra. Mas ela não compreendia o que se passava. Achava que a guerra era apenas uma fatalidade. Brecht mostrava, em cena, que sua personagem não entendia que era devido a causas econômicas que advinha a violência militar. Mas diante desse mundo putrefato, dessa grande peça de teatro, como canta Nei Lisboa, o espectador vai compreendendo essas coisas... De forma análoga a de Brecht, Bornheim vai engendrando nessas cenas, adaptadas a ambientações tropicais, leituras sobre os sentidos da tragédia, os sentidos de temas tão cruciais como a desigualdade social, a educação pública, os rumos da universidade, a tecnologia e suas implicações (que favorecem os conglomerados privados em tempos de violências neoliberais explícitas), a ecologia e as tomadas de posição políticas. Muitos desses temas já são discutidos por ele, por exemplo, em “O marxismo e a exigência de sua renovação” ou em “Revolução do ócio”. Indispensáveis também, para visualizar a conjuntura, são os ensaios “O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sensível”, “A educação pela máquina” (paráfrase do poema “A educação pela pedra”, de João Cabral de Melo Neto), “Democracia e cultura”; A perplexidade do homem contemporâneo;, para ficarmos com apenas alguns. Na contraparte dos que “teimam em ignorar a política”, Bornheim manifestava-se. E de forma semelhante a Paulo Freire e outros professores de universidades brasileiras, foi censurado, impedido de lecionar e teve que se exilar durante a ditadura civil-militar. Estamos a rever filmes antigos em nosso quadro atual, manchado de desrespeito e violência contra professoras e professores, de aniquilação de direitos e inconsequentes defesas de “escolas sem partido”. Mas mesmo com todas as vicissitudes, as atuações artísticas e culturais tornam resistentes, como disse Bornheim, “os descendentes de Machado de Assis”. 

 

 

Para concluir, sublinho um trecho de uma entrevista do autor sobre cinema(datiloscrito sem data encontrado entre suas notas de trabalho). Perguntado sobre qual categoria “expressaria melhor os problemas sociais brasileiros (se a épica, a trágica ou a dramática)”, Bornheim diz: 

 

 

Todas as categorias se encontram hoje mais ou menos debilitadas,gastas por uma tradição que tende a perder sentido. Atualmente, se faz de tudo um pouco; ou ao menos se tenta, como se isto dependesse do arbítrio do artista. No passado, a literatura foi, por exemplo, primeiro épica, depois trágica, isto é, a literatura toma a forma que melhor responde à índole do tempo. A debilidade atual destas categorias já se revela no fato de que elas pretendem coexistir, como se se tratasse de possibilidades supra-históricas. Mas quando a subjetividade se torna um vício, o homem não pode mais ser plenamente épico ou plenamente trágico; e o drama não passa de um produto híbrido. [...] Mas se se devesse escolher entre os gêneros, creio que o problema se coloca no épico. Na arte contemporânea, os outros gêneros apresentam, quase sempre, um gosto de fim de festa. O épico, ao contrário, é por natureza mais aberto. Explico melhor. A derrubada das grandes ilusões e a consequente revolução social, qualquer que seja a acepção que se empreste a esta palavra, é um traço marcante do século vinte. E o homem revolucionário é épico, por uma razão muito simples: ele não está empenhado em confessar-se, em restabelecer uma harmonia perdida; o que o aflige é a instauração de um novo reino, de uma nova ordem de coisas. Ele quer construir um mundo. E essa é sem dúvida a inquietação fundamental de nossos dias, em todos os setores da cultura.

Comecei este breve escrito falando em leituras e releituras. É que as inquietações, mencionadas por Bornheim na citação acima, têm sido abordadas pelo grupo de pesquisa Crítica e experiência estética da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Desde 2015 foram sete dissertações de mestrado, dez pesquisas de iniciação científica, dois trabalhos de conclusão de curso, várias publicações e interlocuções com colaboradores tematizando direta ou indiretamente a obra de Bornheim. Alguns desses resultados podem ser acessados neste site. Com tais ações, pretende-se manter pulsante a obra do filósofo. 

Texto publicado no Caderno de Sábado do Jornal Correio do Povo de 27 de março de 2021. 

Gaspar Paz – Professor do Depto. de Teoria da Arte e Música e do Programa de Pós-graduação em Artesda UFES. Doutor em filosofia (UERJ), mestre em musicologia (UFRJ) e licenciado em filosofia(UFRGS). Organizador do livro Temas de Filosofia, de Gerd Bornheim (São Paulo: Edusp, 2015). Autordo livro Interpretações de linguagens artísticas em Gerd Bornheim (Vitória: Edufes, 2019).

Homenagem ao professor Gerd Bornheim

 

Rosa Maria Dias

 

 

  Para mim, é uma honra fazer esta homenagem ao Gerd, meu amigo e professor querido.
  Início referindo-me ao último encontro que Julio e eu tivemos com Gerd, um mês antes de sua morte. Estávamos muito tristes. Já sabíamos que lhe restava pouco tempo de
vida. Com muito tato ao falar e muita emoção, Julio comentou com ele uma resenha que acabara de ler, na qual um professor fazia uma observação crítica à tradução de Haroldo de Campos da Ilíada. O autor elogiava a tradução, mas fazia uma ressalva: havia muitas palavras compostas e excesso de hífens, o que lhe parecia estranho à tradição da língua portuguesa. Gerd prontamente retrucou: “Mas, como, se justamente o hífen dá mobilidade à língua? O hífen intensifica e forja a sucessão das imagens e da ação, tão importante na épica, cria o movimento, que é o efeito desejado da tradução: sucessão de imagens, ação. O
hífen junta palavras, revela a ação, dá mobilidade à língua”.


(É esse o olhar que estamos perdendo...)


  Conversamos, então, animadamente, sobre a importância de Haroldo de Campos na
literatura brasileira, sobre o novo filme de Julio, Filme de Amor, até que Gerd interrompeu a
conversa para dar-nos a triste, tristíssima, notícia: “Sabe –– disse ele, em tom bastante
emocionado ––, tenho uma péssima notícia para dar a vocês: estou com dois tumores malignos no cérebro. O meu plano de saúde não cobre uma grande operação, mas isso já
não importa porque, de qualquer modo, mesmo depois da operação, teria apenas um mês de vida”. E acrescentou: “Foi um choque para mim, sabe? Eu teria ainda muitas coisas a dizer”.
  Julio foi às lágrimas. E essa frase tão direta, tão doída, dita por alguém que, de fato,
sabia que não lhe restaria mais tempo para nada, ficou em minha cabeça. Eu olhava para aquele homem altivo, sem escutar mais nada. Contemplava seu rosto fechado – já aparentava a rigidez de uma esfinge. Ele, que amava verdadeiramente todos os prazeres da vida – os
intelectuais e os carnais, os drinques de champanhe avermelhado pelo cassis e os passeios matinais a pé no Parque do Aterro, costeando o Pão de Açúcar –, não demonstrava medo 
da morte em momento algum. Deixava, sim, vivamente transparecer que já pensara muito sobre ela, mas que, agora, estava sendo apanhado de surpresa: ela lhe tirava dos pés os tapetes persas por onde constantemente caminhava e viajava em busca de outros tempos, novas paisagens, novos espaços, novas linhas e cores para exercitar o dom de fazer filosofia dentro e fora de seu território. Havia uma tristeza em seu rosto – já sentia a falta da companhia dos amigos e principalmente da sala de aula, o lugar onde generosamente dividia seu saber com alunos e amigos, e, como ele mesmo me revelou um dia, que utilizava como local para experimentação. “Na sala de aula, não devemos ter medo de errar”, dizia ele muitas vezes, confortando-me pelo meu excesso de timidez. “O cientista tem seus laboratórios para testar suas hipóteses; nós, filósofos, temos a sala de aula para realizar nossas experimentações e testar a eficácia de nossas ideias.”


  Em uma aula inaugural do Departamento de Filosofia da Uerj, hoje transcrita em uma página da internet que está sendo organizada por Toni, aluno da graduação de Filosofia, em homenagem ao Gerd, o filósofo faz sua exposição, sua declaração de princípios para aqueles que estão em via de assumir a Filosofia como forma de trabalho. Após receitar muito e muito trabalho, muita e muita leitura, a aquisição do hábito de resumir por
escrito algumas páginas do que foi lido e uma boa organização na pesquisa bibliográfica, e mesmo a criaçã
o de uma pequena biblioteca particular, revela o que pensa da Filosofia:

 


A filosofia pode e deve pensar tudo o que existe. Um dos tópicos mais importantes de filosofia relativamente à prática está precisamente em que ela faz da prática um dos seus assuntos preferidos: existe um empenho em pensar a ação humana, de modo geral, e mais especificamente, de pensar a política e tudo o que a envolve, ou ainda, de pensar, por exemplo, a técnica e suas implicações. Mas a mais importante dimensão prática da filosofia certamente está numa certa transformação que ela termina ensejando naqueles que a praticam com o empenho que ela merece: a prática da filosofia exerce uma boa força de transformação no comportamento humano. E essa mudança se verifica num ponto bem preciso: no desenvolvimento do espírito crítico. A inteligência pertence de modo essencial à realidade humana, e ela não deve ser entendida apenas como uma faculdade passiva. Bem antes disso é necessário entender que serinteligente é simplesmente uma obrigação: o homem deve inteligir tudo o que o cerca e também a si mesmo. Pois tudo quer ser apreendido de modo o mais inteligente possível. Tudo: as coisas, os aconteceres, a ciência, a técnica, a arte, a sociedade e, evidentemente a política, já que somos fundamentalmente responsáveis por tudo o que nos cerca. O ensino, a pedagogia é a dimensão definitiva do homem. O orgulho da filosofia está em fazer entender que o exercício da crítica deve obedecer a certo rigor, a certa disciplina do pensamento, a um considerável acervo de conhecimento, e a uma vontade, a uma decisão de ser cidadão pleno do país e do mundo.

A essas declarações de princípios, acrescento aquelas que ele mesmo emprega em seu livro Introdução ao filosofar:

Quem se resolve, ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa resolução, uma certa responsabilidade. Um compromisso, que como todo compromisso, impõe determinadas condições, que coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e redutível em uma existência individual. O senso de responsabilidade não é simplesmente algo de interior, mas remete em primeiro lugar para a sociedade. E o sentir-se responsável dentro da sociedade na qual se vive – essa é a grande responsabilidade. É preciso ter uma espécie de consciência política no sentido amplo da palavra. É preciso pertencer de fato à cultura.

Por ter algumas vezes presenciado a efetiva participação de Gerd na cultura brasileira, por tê-lo muitas vezes visto comentar peças teatrais, exposições de pintura, concertos e filmes, fui reler, para fazer essa homenagem, um de seus últimos livros: Páginas de filosofia da arte. Chamou-me logo atenção a observação que ele faz no final do prefácio. Diz ele: “Possíveis repetições em algumas análises não poderiam, claro está, justificar-se por
si mesmas, mas tão somente por causa dos diferentes contextos em que aparecem” 1 . Procurei identificar e analisar as repetições. Um dado curioso apresentou-se: cada uma delas fala de uma mesma preocupação – o descuido ou o pouco interesse dos grandes filósofos pela estética. Assim, as diversas repetições que aparecem no texto e que foram apresentadas em diferentes situações justificam-se como uma estratégia, uma luta contra o confinamento da
estética em um espaço marginalizado, que esvaziaria sua potência, reduziria sua força. Por seu caráter múltiplo e por mudar de forma, por ameaçar o modelo da identidade e da linguagem racional, conceitual e argumentativa, a arte foi condenada pela metafísica a ficar num segundo plano. Portanto, é bastante sugestivo que essa preocupação com o espaço periférico da arte seja a frase de abertura de seu primeiro texto:

A presença da Estética durante os dois mil e quinhentos anos em que se desenvolveu o pensamento metafísico é de uma pobreza desoladora. Mesmo nos tempos modernos, quando a arte começa a manifestar maior autonomia e enseja não poucas polêmicas, os grandes filósofos passam descuidados pelos monumentos que poderiam suscitar a sua curiosidade intelectual: um breve ensaio de Hume sobre a tragédia, dois capítulos de Kant, algumas observações de Leibniz, e é preciso garimpar entre os pequenos para encontrar algum material (...). Entretanto, não chega a configurar um paradoxo dizer-se que todo o empenho hegeliano termina constituindo, em seu próprio núcleo, uma antiestética radical 2 .

 

 Compreendendo, então, o propósito de Gerd nesses últimos anos de trabalho filosófico, de lutar para encontrar um lugar para a estética no Panteon da Filosofia, fui procurar em sua biografia o momento do aparecimento, na sua formação filosófica, do interesse pela arte. Nas Conversas com os filósofos brasileiros, ao narrar a sua formação, Gerd faz uma observação interessante. Diz ele: “A gente escolhe muito menos do que pensa, e as coisas vão acontecendo de um modo muito inusitado” 3 .

 

Ouçamos por um momento sua própria exposição:

 

 Na época da universidade, reinava um tipo de filosofia que hoje está quase esquecida no Brasil – o tomismo. Isso me deu uma base medieval e grega bastante sólida. Claro que para mim o tomismo está totalmente ultrapassado, mas com ele tive a vantagem de ter uma espécie de formação clássica, e a desvantagem de ter um tipo de ensino completamente alheio aos problemas contemporâneos. (...) A formação que tínhamos na universidade era muito especializada: era necessário estudar línguas, inclusive o grego, um pouco de literatura, e, evidentemente, eu lia
tudo que podia. Queria completar essa formação com uma consciência social – voltada para o pensamento sociológico. Mas os cursos de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, não aconteciam todos os anos, devido a terem pouca procura. Então descobri que havia uma cadeira de sociologia no curso de filosofia, entrei na filosofia e fiquei. (...
) Esse tipo de formação clássica que tive em Porto Alegre tem as suas vantagens, só que, em geral, a tendência é alienar um pouco o indivíduo. Talvez eu não tenha me alienado tanto, na medida em que li muita sociologia brasileira, os clássicos como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna etc 4 .

Em 1953, continuou sua formação em Paris e descobriu o pensamento contemporâneo:

Paris foi muito importante para mim porque lá que conheci e estudei com a nata do pensamento francês do início do século – com exceção de Sartre, que não dava aula. A Sorbonne era muito rica nessa época. Além disso, ter conhecido Merleau- Ponty valeu a pena. Eu assisti também ao último curso de Bachelard sobre a vida filosófica, uma coisa histórica e fantástica, pois a sua experiência filosófica foi posta em aula. 5

De fato, a liberdade de escolha é uma coisa muito peculiar ao indivíduo. E ele acrescenta:

A gente escolhe muito menos do que pensa, e as coisas vão acontecendo de modo inusitado. Por exemplo, não foi o predomínio de ensino tomista na faculdade que me levou a passar para a escola de teatro. Na verdade, isso foi um acidente. Sempre gostei muito do teatro e da música. Organizaram um curso de arte dramática em Porto Alegre e convidaram Ruggero Jacobi para ser professor. (...). Comecei a assistir às aulas e fui gostando daquilo. Ele montou o Egmont de Goethe, e Cacilda Becker levou Maria Stuart. Ruggero obrigou-me a fazer uma série de conferências sobre Goethe e Schiller, e, com isso, fiquei também no teatro. Logo comecei a escrever uns ensaios menores sobre teatro. Aí aconteceu uma fatalidade: Ruggero simplesmente desapareceu do Brasil, sem se despedir de ninguém. Sumiu. Então comecei a dar aula sobre teoria do teatro e acabei diretor da escola. Isso foi um desvio muito interessante e muito bom para mim 6 .

 


O interesse mais profundo pelas artes plásticas surgiu também para Gerd de um outro desvio. Ele próprio conta como isso aconteceu:

Fui cassado em 1969, dava aulas para sobreviver em um pré-vestibular. Até que a Universidade de Frankfurt convidou-me para dar aulas, para dar um curso sobre Sartre. Quando terminou aquele semestre, fui para Paris. Fiquei lá por quatro anos, dei aula de alemão para sobreviver, até que um amigo muito rico, dono de um jornal, convidou-me para organizar uma galeria de arte. Isso foi muito importante como experiência. Mais uma vez, esse desvio foi muito importante para mim.

Sempre afirmando o acaso, cultivando-o generosamente, Gerd, aos poucos, vai afastando-se do ideal do filósofo que exerce sua tarefa explicitando textos. Mostra-se sempre avesso a um tipo de filosofia que cada vez mais se fecha na especialização, e procura pensar a cultura brasileira – por mais que tenha sido difícil para ele. Foi sua efetiva participação na vida cultural do Brasil que o levou a começar a escrever sobre as artes plásticas, o teatro e o cinema no Brasil. Prossegue Gerd:

A minha geração aprendeu que temos de ter um compromisso com a cultura e participar dela. Sempre me sinto em déficit com a cultura brasileira, porque, quando toco nesse assunto, é sempre meio de passagem, de raspão, um artigo mais curto que escrevo. Mas eu não fui educado para isso, e esse é o problema todo. Esse compromisso com a cultura não se revelava, por exemplo, no tomismo, que antigamente não tinha compromisso com nada, era uma teoria descompromissada e abstrata.

Inspirando-me em Drummond, poderia dizer que Gerd não queria mais trabalhar sem alegria para um mundo caduco, mas sim ter como matéria o tempo, o tempo presente, os homens presentes. A vida presente. Gerd volta-se, então, para a cultura brasileira, não como um crítico de arte, um crítico de teatro ou de cinema – busca para ela um ponto de vista filosófico. É sempre na condição de filósofo que se aproxima de um quadro, de uma escultura, de uma peça ou de um filme. Nas Conversas com os filósofos brasileiros, retifica mesmo a compreensão que um setor da imprensa tem dele ao classificá-lo como crítico de
arte:

A crítica de arte é sempre objetivante. Nunca fiz e não me interessa fazer crítica de arte. Como me aproximo de um quadro? Não vejo o quadro como um objeto, vejo-o como uma linguagem, e escrevo como se pudesse caminhar paralelamente  em relação à linguagem do quadro. Eu recrio o quadro na palavra. Claro que isso é impossível, mas procuro caminhar nesse sentido. 

Para poder recriar na palavra um quadro, uma escultura, uma peça, uma música e um filme, ele também teve que fazer um esforço, um exercício de linguagem. Diante da pergunta sobre o seu belo estilo, sobre seu modo de tratar a língua, expressando seu pensamento com clareza, Gerd escreve:

Procuro ler padre Bernardes, Rubem Braga e Machado de Assis. Não me interessa o que eles dizem; interessa-me o modo como eles escrevem. Leio com lápis na mão para dominar a língua. Isso é um problema que não tem fim, porque a língua tem de ser criada. (...) Até certo ponto consigo fazer isso, mas é muito difícil.

Considerando que a maior atuação de Gerd na cultura brasileira tenha sido através do teatro, os diretores brasileiros chamavam-no frequentemente para os ensaios gerais, a fim de que ele pudesse dar suas sugestões e, pudesse, com sua vasta cultura filosófica e teatral,
ajudar os atores a refletir sobre o que estavam fazendo para que melhor exercessem a sua função. E, para que Gerd discutisse com os diretores e atores de teatro, já que havia escrito sobre Brecht, Gerald Thomas, José Celso Martinez e Antunes Filho.


Para finalizar, retomo algumas passagens da fina análise de Gerd do Miramar, um filme do Julio Bressane.
 

Confessando que não havia lido nada sobre cinema, nem mesmo o livro de Deleuze, diz que escrevia sobre cinema porque usualmente assiste a tudo ou a quase tudo que está
disponível nos cinemas; por isso se estimula a pensar nessa arte do futuro. Segundo ele:

 


A arte reclama o ponto de vista: a visão a partir de um certo ângulo é o que determina a natureza da obra feita em todas as suas dimensões. E nisso está a definição do cinema e mesmo o princípio de sua possibilidade. E o angular, no fundo, resume-se numa questão de disciplina do olhar. O experimentalismo reside por inteiro na invenção do angular. É a descoberta dessa experiência na linguagem cinematográfica que alimenta o interesse de todos os cinéfilos, de todos os frequentadores dos clubes de cinema. A essência do angular está no olho, no ato de olhar: eu preciso parar para ver o quadro, sentar para ver o espetáculo teatral. E é justamente essa estaticidade que se modifica no cinema a ponto de se dizer que a sétima arte deva ser vista como a mais significativa, a mais revolucionária das artes. 7

 

 

Pensando Miramar, Gerd vai mostrar que todo o empenho do filme concentra-se na construção da linguagem. O que lhe suscita a curiosidade e lhe parece que deva ser 

apontado como verdadeiro daimon inspirador da empreitada essencialmente provocadora de Julio é o fato de ele explorar uma linguagem que se situa nas antípodas do cinema afeiçoado a nossos hábitos. Numa larga medida, a memória é um dos seus elementos nutrientes. Assim escreve Gerd:

Se se partir da ideia de que o cinema está todo no esplendor da imagem e de que a imagem vive a si própria no momento instantâneo de seu acontecer, Bressane como que devolve a imagem às suas primícias, à sua anterioridade primeva e tudo se faz citação. (...) É como se o filme já tivesse sido feito desde toda a eternidade, na desmemória da água e da pedra, no corpo orgiástico que desfalece, ou na palavra desmentida na estabilidade do livro. Claro que tudo não passa de ficção, mas o grande réu é a imagem; e o juiz é a mobilidade angular quase negada em sua razão de ser . 8

E acrescenta, de forma curiosa, ainda sobre esse filme, que ele não se esgota completamente numa estética do movimento, um movimento que tornou compulsiva a expressão The End. “Pois não é que Bressane se intromete nessa ordem das coisas, e elege o espaço como sua categoria de base?” 9


Eis um breve retrato da trajetória de um filósofo, de um homem múltiplo, sempre aberto a novos saberes, aglutinando ao seu redor amigos, alunos e artistas.


Gostaria de partilhar com vocês aonde minha imaginação me levou no velório do Gerd. Como ele conservava um sorriso sereno, imaginei-o, então, sendo levado por Apolo, ajudado por uma máquina teatral para o céu dos céus. Flutuava, excelso, dissolvido na névoa, cantando o Orfeo, de Monteverdi.

Referências bibliográficas:


BORHEIM, Gerd. Páginas de Filosofia da Arte, Rio de Janeiro: Uapê, 1998.
______. Introdução ao filosofar, Rio de Janeiro: Globo.
______. Conversas com os filósofos brasileiros. Organizado por Marcos Nobre e José
Marcio Rego. São Paulo: Ed. 34, 2000.

Rosa Maria Dias 

Graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993). Atualmente é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Estética, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura, educação, filosofia., cinema.

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